O que nos faz egoístas ou altruístas?

A diferença entre o altruísmo e o egoísmo não se deve portanto ao fato de ser eu que deseje alguma coisa, mas à natureza de meu desejo, que pode ser benevolente, malevolente ou neutra. Posso desejar o bem dos outros, como posso desejar o meu. O egoísmo não consiste só em desejar algo, mas em satisfazer os desejos exclusivamente centrados nos interesses pessoais, sem levar em consideração os interesses dos outros.

O ponto de inflexão entre altruísmo e egoísmo deve-se portanto à natureza de nossa motivação. É nossa motivação, o objetivo último que queremos alcançar, que dá cor a nossos atos, ao determinar seu caráter altruísta ou egoísta. Estamos longe de dominar a evolução dos acontecimentos exteriores, mas quaisquer que sejam as circunstâncias, podemos sempre examinar nossas intenções e adotar uma atitude altruísta.

Matthieu Ricard, “A revolução do altruísmo”.

Imagem: Jacques-Louis David, "Bélisaire demandant l'aumône".

Valores humanos: fidelidade e transmissão

Imagem: Rembrandt, "Jacob Blessing the Sons of Joseph".

Abaixo, um trecho de "The Little Book of Atheist Spirituality", de André Comte-Sponville:

“O oposto de barbarismo é civilização. O que precisamos não é, como Nietzsche recomendou, a “destruição de todos os valores” — ou mesmo, a invenção de novos, em sua maioria. Valores verdadeiros já são bem conhecidos; a Lei é bem conhecida. Mais ou menos há 26 séculos, em todas as grandes civilizações da época, a humanidade “selecionou” (como diriam os darwinistas) os grandes valores que nos permitem viver em conjunto.

Karl Jaspers chamou esse período de era axial (do grego axios, valor), e é uma era à qual todos estamos endividados. Quem gostaria de retroceder para os dias antes de Heráclito ou Confúcio, Buda ou Lao-tzu, Zoroastro ou Isaías? Deveríamos nos contentar em repetir o que eles disseram? Claro que não. Devemos contudo fazer tudo que pudermos para compreender isso, atualizar e passar adiante! Se não fizermos isso, não há esperança de progresso.

Como diversos filósofos já demonstraram (Alain na França, Hannah Arendt nos EUA), apenas transmitindo o passado a nossas crianças podemos dar oportunidade para que elas inventem seu futuro; somente conservando a cultura podemos ser politicamente progressistas. Isso é particularmente verdadeiro em relação à ética, e se aplica a valores tanto ancestrais (aqueles concebidos pelas grandes religiões e sábios do passado — especificamente, justiça, compaixão e amor…) quanto aos modernos (valores do Iluminismo — especificamente, democracia, separação entre igreja e estado, direitos humanos…).

Que não apaguemos o passado! Com poucas exceções, não há necessidade de inventar novos valores. O que precisamos inventar — ou melhor, reinventar — é uma nova fidelidade aos valores que foram entregues a nós. De fato, contraímos uma dívida com o passado que só pode ser paga ao futuro. A única maneira de sermos verdadeiramente fiéis aos valores que herdamos é passá-los para nossas crianças.

Esses dois conceitos — transmissão e fidelidade — são inseparáveis; o primeiro leva para o futuro o que o segundo recebeu do passado. Eles são os dois polos de todas as tradições vivas — e, desse modo, de todas as civilizações também. Apenas fluindo adiante, o rio da humanidade evitará trair sua própria fonte.”

Empatia, altruísmo e compaixão

Emocionar-se com o sofrimento do outro, sofrer por ele estar sofrendo, ficar alegre quando ele está alegre e triste quando ele está aflito, demonstram ressonância emocional.

Por outro lado, distinguir as causas imediatas ou duradouras, superficiais ou profundas dos sofrimento do outro e ter a determinação de solucioná-los vêm da sabedoria e da compaixão “cognitiva”. Esta última está ligada à compreensão das causas do sofrimento. Com isso, sua dimensão é mais ampla e seus efeitos maiores.

Esses dois aspectos do altruísmo, emocional e cognitivo, são complementares e não constituem duas atitudes mentais separadas e estanques. Em algumas pessoas, num primeiro momento, o altruísmo ganha a forma de uma experiência emocional mais ou menos forte, suscetível de transformar-se em seguida em altruísmo cognitivo no momento em que a pessoa começa a analisar as causas do sofrimento. No entanto, o altruísmo permanece restrito se for limitado unicamente ao componente emocional.

Matthieu Ricard, em “A revolução do altruísmo”, parte 1.

Não se engane: o retrato da humanidade que a mídia pinta não é fiel

Trancados em nossos casulos privados, a mídia passou a ser a principal maneira de imaginar como são as outras pessoas, e, como consequência, esperamos que todos os estranhos sejam assassinos, golpistas ou pedófilos — o que reforça o impulso de confiar apenas nos poucos indivíduos que já foram selecionados por redes familiares e de classe.

Naquelas raras ocasiões em que as circunstâncias (nevascas, tempestades) conseguem romper nossas bolhas herméticas e nos jogam junto a pessoas que não conhecemos, tendemos a nos maravilhar quando os concidadãos demonstram pouco interesse em nos cortar ao meio ou em molestar nossos filhos e que podem até mesmo ser surpreendentemente gentis e se mostrar dispostos a ajudar.

Alain de Botton, em “Religião para ateus”, cap. 2.

A importância da lucidez

O altruísmo deve ser iluminado pela lucidez e sabedoria. Não se trata de consentir indistintamente com todos os desejos e caprichos dos outros. O amor verdadeiro consiste em associar uma benevolência sem limites ao discernimento sem falhas. Definido desse modo, o amor deve considerar todos os pormenores de cada situação e se perguntar: “Quais são os benefícios e os inconvenientes a curto e a longo prazo do que eu vou fazer? Meu ato irá afetar um pequeno ou grande número de indivíduos?” Transcendendo qualquer parcialidade, o amor altruísta deve considerar lucidamente a melhor maneira de realizar o bem para os outros. A imparcialidade exige não favorecer alguém pelo simples fato de sentir mais simpatia por uma pessoa do que por outra que também se encontra em necessidade, talvez muito maior.

Matthieu Ricard, “A revolução do altruísmo”, parte 1

“Vamos trabalhar pela paz em vez de esperar pela ajuda de Deus, de Buda ou de governos”

Trechos de entrevista do líder tibetano após os ataques em Paris:

“O século 20 foi violento, mais de 200 milhões de pessoas morreram devido a guerras e outros conflitos. Vemos agora o sangue derramado no século passado transbordar para este. Se dermos mais ênfase à não violência e à harmonia, poderemos proclamar um recomeço. A menos que façamos sérios esforços para alcançar a paz, continuaremos a ver uma reprodução do caos que a humanidade vivenciou no século 20.

As pessoas querem levar uma vida pacífica. Mas os terroristas têm vista curta, e esta é uma das causas dos desenfreados atentados suicidas. Não podemos resolver esse problema apenas através de orações. Eu sou budista e acredito na oração. Mas foram os seres humanos que criaram esse problema, e agora estamos pedindo a Deus para resolvê-lo. É ilógico. Deus diria: resolvam-no sozinhos porque vocês mesmos o criaram.

junte-sePrecisamos de uma abordagem sistemática para fomentar valores humanistas, que promovam unidade e harmonia. Se começarmos agora, há esperança de que este século possa ser diferente do anterior. É do interesse de todos. Por isso, vamos trabalhar pela paz em nossas famílias e na sociedade, em vez de esperar pela ajuda de Deus, de Buda ou de governos.”

Sua mensagem principal sempre foi de paz, compaixão e tolerância religiosa, mas o mundo parece estar indo na direção oposta. A sua mensagem não ressoou nas pessoas?

fb“Eu discordo. Acho que apenas uma pequena porcentagem das pessoas adotaram o discurso da violência. Nós somos seres humanos, e não há base ou justificativa para matar outras pessoas. Se você considera os demais como irmãos e irmãs, e respeita seus direitos, não resta espaço para a violência.

Além disso, os problemas que estamos enfrentando hoje são resultado de diferenças superficiais entre crenças religiosas e nacionalidades. Somos um só povo.”

Vemos líderes políticos obcecados com o crescimento econômico, mas que não se importam com a moralidade. Você se preocupa com essa tendência?

“Nossos problemas vão aumentar se não posicionarmos princípios morais à frente do dinheiro. A moralidade é importante para todos, inclusive para religiosos e políticos.”

Leia a entrevista inteira aqui.

Atenção plena precisa de altruísmo

matthieu-ricard-1De um texto do Matthieu Ricard, no Brasil Post (obs: por “mindfulness”, leia-se “atenção plena”):

… Quando instrutores qualificados como Jon Kabat-Zinn, ele mesmo uma pessoa muito compassiva, ensina a prática mindfulness, as principais mensagens que vêm à mente são de benevolência, altruísmo e compaixão.

No entanto, nem sempre é assim. Um professor pode deixar de fora esse importante componente na sua apresentação ou método. Quando a bondade e a compaixão não estão claramente presentes no treinamento, há sempre o risco de usar a mindfulness meramente como ferramenta para aumentar a concentração e o foco, com o objetivo de atingir metas eticamente questionáveis. …

… Para proteger essa prática de qualquer desvio, um componente claro de altruísmo precisa ser incorporado desde o início. Precisamos chamá-la, sistematicamente, de “mindfulness compassiva”.

Ao fazermos isso, oferecemos uma maneira muito poderosa e secular de cultivar a benevolência e promover uma sociedade mais altruísta, ao mesmo tempo cultivando a atenção plena a qualquer momento. Para ser totalmente transformadora, a revolução mindfulness deve andar de mãos dadas com a revolução altruísta.

Leia também:

Ser altruísta é a saída para construir harmonia em sociedade.