Imagem: Rembrandt, "Jacob Blessing the Sons of Joseph". Abaixo, um trecho de "The Little Book of Atheist Spirituality", de André Comte-Sponville:
“O oposto de barbarismo é civilização. O que precisamos não é, como Nietzsche recomendou, a “destruição de todos os valores” — ou mesmo, a invenção de novos, em sua maioria. Valores verdadeiros já são bem conhecidos; a Lei é bem conhecida. Mais ou menos há 26 séculos, em todas as grandes civilizações da época, a humanidade “selecionou” (como diriam os darwinistas) os grandes valores que nos permitem viver em conjunto.
Karl Jaspers chamou esse período de era axial (do grego axios, valor), e é uma era à qual todos estamos endividados. Quem gostaria de retroceder para os dias antes de Heráclito ou Confúcio, Buda ou Lao-tzu, Zoroastro ou Isaías? Deveríamos nos contentar em repetir o que eles disseram? Claro que não. Devemos contudo fazer tudo que pudermos para compreender isso, atualizar e passar adiante! Se não fizermos isso, não há esperança de progresso.
Como diversos filósofos já demonstraram (Alain na França, Hannah Arendt nos EUA), apenas transmitindo o passado a nossas crianças podemos dar oportunidade para que elas inventem seu futuro; somente conservando a cultura podemos ser politicamente progressistas. Isso é particularmente verdadeiro em relação à ética, e se aplica a valores tanto ancestrais (aqueles concebidos pelas grandes religiões e sábios do passado — especificamente, justiça, compaixão e amor…) quanto aos modernos (valores do Iluminismo — especificamente, democracia, separação entre igreja e estado, direitos humanos…).
Que não apaguemos o passado! Com poucas exceções, não há necessidade de inventar novos valores. O que precisamos inventar — ou melhor, reinventar — é uma nova fidelidade aos valores que foram entregues a nós. De fato, contraímos uma dívida com o passado que só pode ser paga ao futuro. A única maneira de sermos verdadeiramente fiéis aos valores que herdamos é passá-los para nossas crianças.
Esses dois conceitos — transmissão e fidelidade — são inseparáveis; o primeiro leva para o futuro o que o segundo recebeu do passado. Eles são os dois polos de todas as tradições vivas — e, desse modo, de todas as civilizações também. Apenas fluindo adiante, o rio da humanidade evitará trair sua própria fonte.”