Nossa compaixão natural pode nos salvar

Você já se sentiu impotente, deprimido, frustrado e até com raiva diante de problemas coletivos graves, como negligência com a pandemia, racismo, violência, desigualdade ou colapso ambiental?

Como é algo bastante desconfortável, é possível não apenas afundarmos nesses sentimentos negativos, mas, em o outro extremo, negar, evitar ou fingir que esses problemas não existem. E isso acontece de forma inconsciente até, como um tipo de mecanismo de defesa.
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Não acreditar em nada ou cultivar nossa humanidade?

andre-comte-sponvilleSegue abaixo um trecho do livro “The Little Book of Atheist Spirituality”, em que o filósofo contemporâneo francês André Comte-Sponville fala sobre o perigo de abandonarmos a fidelidade aos valores e sobre a importância de cultivarmos uma ética secular (uma das mensagens principais do movimento Ação para Felicidade). Vale notar que o autor não está criticando a religião nem louvando o ateísmo, pelo contrário: diz que mesmo pessoas sem religião podem se beneficiar da ética em que as religiões também se baseiam.

… O que sobra do Ocidente Cristão quando ele deixa de ser cristão?

Há apenas duas possíveis respostas para essa pergunta: nada ou alguma coisa.

Se acreditarmos que nada sobra, então podemos muito bem jogar logo a toalha. Não teríamos mais nada com que fazer oposição tanto ao fanatismo vindo de fora, quanto ao nilismo vindo de dentro — e, contrariamente ao que muitas pessoas pensam, o nilismo é o principal perigo.

Iríamos pertencer a uma civilização morta, ou pelo menos uma que está morrendo. Poderíamos continuar vendendo carros, computadores, filmes e videogames, mas essas atividades seriam sem sentido e não durariam muito — porque a humanidade não mais seria capaz de se reconhecer nelas, ou considerá-las um motivo suficiente para seguir vivendo e lutando; dessa forma, seríamos incapazes de resistir ao desastre (ideológico, ecológico ou econômico).

A riqueza nunca foi suficiente para criar uma civilização, muito menos a pobreza. Civilizações requerem cultura, imaginação, entusiasmo e criatividade, e nada disso vêm sem coragem, trabalho e esforço. “O principal perigo que ameaça a Europa”, como Edmund Husserl colocou, “é a fadiga”. Boa noite, crianças; o mundo Ocidental agora decidiu substituir a fé pela sonolência.

Entretanto, podemos também acreditar que algo sobra sim quando o Ocidente Cristão deixa de ser cristão. E já que o que sobra não é mais uma fé em comum (porque isso já deixou de ser comum — 50% da população francesa hoje é ateia, agnóstica ou não-religiosa; cerca de 8% é muçulmana, e por aí vai), então só pode ser uma fidelidade em comum, ou seja, uma ligação compartilhada com os valores que herdamos, e que — para cada um de nós — pressupõe ou exige o desejo de passá-los adiante.

Acreditar ou não em Deus é uma questão crucial para os indivíduos. Mas para os povos, isso não é o principal. O destino de nossa civilização não pode depender de uma questão que é objetivamente impossível de solucionar! Há questões mais importantes, mais urgentes com que precisamos lidar. Na verdade, mesmo para indivíduos, a questão da fé não deve eclipsar a questão mais crucial da fidelidade.

Eu realmente desejo submeter minha consciência a uma crença (ou descrença) que não pode ser verificada? Eu realmente desejo obter moralidade à partir de minha metafísica e medir minhas tarefas de acordo com minha fé? Isso significaria abrir mão de uma certeza por uma incerteza, uma humanidade que de fato existe por um Deus possivelmente existente. É por isso que às vezes gosto de me descrever como um ateu devoto. Sou ateu, já que não acredito nem em Deus nem em qualquer poder sobrenatural, e ainda assim sou um devoto, já que reconheço meu lugar dentro de uma história, tradição e comunidade específicas: os valores greco-judaico-cristãos do mundo ocidental.

Minha adolescência me preparou para isso. Eu era cristão, como já mencionei, mas não passava todo tempo estudando o catecismo. Nessa fase de minha existência, a pessoa que mais me ensinou sobre ética — mais do que qualquer padre e, por muito tempo, mais do que qualquer filósofo — foi o cantor Georges Brassens. Todo mundo sabia que ele não acreditava em Deus, embora sua ética, ao mesmo tempo em que não concordava com o Vaticano carregava a marca dos Evangelhos e continuava essencialmente fiel a eles, trazendo o que o filósofo Jean-Marie Guyau descreveu como uma ética “sem obrigações nem punição”. Talvez as canções de Joan Baez, Woody Guthrie e dos Beatles tenham tido papel similar no mundo de língua inglesa.

Outro importante mentor em minha vida foi Montaigne, embora tenha demorado um bom tempo para descobri-lo. Se ele acreditava ou não em Deus é um ponto de debate entre especialistas. Ele mencionava mais Sócrates do que Abraão, mais Lucrécio do que Jesus. Acima de tudo, ele ensinou a liberdade. Isso não o impediu de, ao discutir questões morais, citar o Genesis (“a primeira lei que Deus deu ao ser humano”) ou mencionar os Dez Mandamentos, “que Moisés preparou para o povo da Judeia sair do Egito”. Sua mãe, aparentemente, era judia. Talvez isso tenha o ajudado a ver que não há contradição entre fidelidade e liberdade espiritual.

O mesmo era verdade sobre Spinoza. Ele não era mais cristão do que eu sou; na verdade, ele pode muito bem ter sido tão ateu quanto eu (pelo menos, ele não acreditava em nenhum Deus transcendente) — e ainda assim ele considerava Jesus um grande mestre. Era ele Deus? Definitivamente não. Era ele o Filho de Deus? Não, isso também não. Para Spinoza, Jesus era meramente um ser humano, mas um ser humano excepcional — “o maior de todos os filósofos”, ele uma vez o chamou — aquele que melhor expressou a essência da moralidade. E o que seria isso? É o que Spinoza chama de “o espírito de Cristo”, querendo dizer que, para espíritos livres, a única lei é “justiça e caridade”, a única sabedoria é o amor, e a única virtude é “fazer o bem e viver com alegria”. Por que meu ateísmo deveria impedir-me de enxergar a grandeza dessa mensagem?

Imagem no topo: casualeye, CC0.

Valores humanos: fidelidade e transmissão

Imagem: Rembrandt, "Jacob Blessing the Sons of Joseph".

Abaixo, um trecho de "The Little Book of Atheist Spirituality", de André Comte-Sponville:

“O oposto de barbarismo é civilização. O que precisamos não é, como Nietzsche recomendou, a “destruição de todos os valores” — ou mesmo, a invenção de novos, em sua maioria. Valores verdadeiros já são bem conhecidos; a Lei é bem conhecida. Mais ou menos há 26 séculos, em todas as grandes civilizações da época, a humanidade “selecionou” (como diriam os darwinistas) os grandes valores que nos permitem viver em conjunto.

Karl Jaspers chamou esse período de era axial (do grego axios, valor), e é uma era à qual todos estamos endividados. Quem gostaria de retroceder para os dias antes de Heráclito ou Confúcio, Buda ou Lao-tzu, Zoroastro ou Isaías? Deveríamos nos contentar em repetir o que eles disseram? Claro que não. Devemos contudo fazer tudo que pudermos para compreender isso, atualizar e passar adiante! Se não fizermos isso, não há esperança de progresso.

Como diversos filósofos já demonstraram (Alain na França, Hannah Arendt nos EUA), apenas transmitindo o passado a nossas crianças podemos dar oportunidade para que elas inventem seu futuro; somente conservando a cultura podemos ser politicamente progressistas. Isso é particularmente verdadeiro em relação à ética, e se aplica a valores tanto ancestrais (aqueles concebidos pelas grandes religiões e sábios do passado — especificamente, justiça, compaixão e amor…) quanto aos modernos (valores do Iluminismo — especificamente, democracia, separação entre igreja e estado, direitos humanos…).

Que não apaguemos o passado! Com poucas exceções, não há necessidade de inventar novos valores. O que precisamos inventar — ou melhor, reinventar — é uma nova fidelidade aos valores que foram entregues a nós. De fato, contraímos uma dívida com o passado que só pode ser paga ao futuro. A única maneira de sermos verdadeiramente fiéis aos valores que herdamos é passá-los para nossas crianças.

Esses dois conceitos — transmissão e fidelidade — são inseparáveis; o primeiro leva para o futuro o que o segundo recebeu do passado. Eles são os dois polos de todas as tradições vivas — e, desse modo, de todas as civilizações também. Apenas fluindo adiante, o rio da humanidade evitará trair sua própria fonte.”

Dalai Lama: chegou a hora de uma espiritualidade e ética que estejam além da religião

Trecho do livro "Beyond Religion" (2011), em que o Dalai Lama explica sua proposta de ética secular -- que basicamente é a mesma aqui de nossa Ação para Felicidade, movimento do qual ele é o patrono.

… Apesar de avanços tremendos em tantas áreas, hoje há ainda grande sofrimento, e a humanidade continua a enfrentar dificuldades e problemas. Enquanto nas regiões mais prósperas do mundo as pessoas desfrutam de estilos de vida com consumo refinado, ainda há incontáveis milhões de pessoas cujas necessidades básicas não são atendidas. Com o fim da Guerra Fria, a ameaça da destruição nuclear global recuou, mas muitos continuam a enfrentar o sofrimento e tragédia de conflitos armados. Em muitas áreas também, pessoas têm que lidar com problemas ambientais que ameaçam seu sustento ou algo pior. Ao mesmo tempo, muitos outros estão lutando para sobreviver diante da desigualdade, corrupção e injustiça.

Esses problemas não se limitam aos países em desenvolvimento. Nos países mais ricos também há muitas dificuldades, incluindo problemas sociais amplamente disseminados: alcoolismo, abuso de drogas, violência doméstica, desagregação familiar. As pessoas estão preocupadas com seus filhos, sua educação e o que o mundo reserva para eles.

Agora também temos que reconhecer a possibilidade de que nós humanos estamos danificando o planeta de um modo que não terá mais volta, uma ameaça que cria ainda mais medo. E todas as pressões da vida moderna trazem junto estresse, ansiedade, depressão e cada vez mais solidão. Como resultado, em todos lugares que vou, as pessoas estão reclamando. Mesmo eu me pego reclamando de vez em quando!

É bem óbvio que alguma coisa está perigosamente faltando no modo como nós humanos estamos fazendo as coisas. Mas o que é que está faltando? O problema fundamental, acredito, é que em todos os níveis estamos dando atenção demais para os aspectos externos e materiais da vida, enquanto negligenciamos a ética moral e os valores internos.

Por valores internos me refiro às qualidades que todos apreciamos nos outros, e sobre os quais todos temos um instinto natural, herdado em nossa natureza biológica, como animais que sobrevivem e prosperam somente em um ambiente de cuidado com o outro, afeição e bom coração — em uma única palavra: compaixão.

A essência da compaixão é um desejo de aleviar o sofrimento dos outros e promover seu bem-estar. Esse é o princípio espiritual à partir do qual todos os outros valores internos positivos surgem. Todos nós apreciamos nos outros as qualidades internas da gentileza, paciência, tolerância, perdão e generosidade; e do mesmo modo todos temos aversão a expressões de ganância, maldade, ódio e intolerância. Então, a promoção ativa das qualidades internas positivas do coração humano, que surgem de nossa disposição interna em direção à compaixão, e o aprendizado sobre como combater nossas tendências mais destrutivas serão apreciados por todos. E os primeiros beneficiários de tal fortalecimento dos valores internos serão, sem dúvida, nós mesmos. Ignoramos nossas vidas interiores sob nosso próprio risco, e muitos dos maiores problemas que temos hoje no mundo são resultado de tal negligência.

Então, o que faremos? Para onde devemos nos voltar em busca de ajuda? A ciência, apesar de todos os benefícios que trouxe ao nosso mundo externo, ainda não forneceu o embasamento científico para o desenvolvimento das fundações da integridade pessoal — os valores humanos internos básicos que apreciamos nos outros e que, se cultivássemos em nós mesmos, seria ótimo.

Talvez precisemos buscar valores internos na religião, como as pessoas têm feito por milênios? Certamente a religião ajudou milhões de pessoas no passado, ajuda milhões hoje e continuará a ajudar milhões no futuro. Mas, apesar de todos os benefícios ao oferecer orientação moral e significado na vida, no mundo secular atual a religião sozinha não é mais algo adequado como uma base para a ética. Uma razão para isso é que muitas pessoas não mais seguem uma religião em particular.

Outro motivo é que, com as pessoas do mundo se tornando cada vez mais intimamente interconectadas em uma era de globalização e sociedades multiculturais, a ética baseada em uma religião específica teria apelo apenas para alguns de nós; ela não seria importante para todos. No passado, quando as pessoas viviam em relativo isolamento umas das outras — como nós tibetanos vivemos bem felizes por muitos séculos, atrás de nossa muralha de montanhas — o fato de alguns grupos terem uma ética baseada na religião não apresentava nenhuma dificuldade. Hoje, contudo, qualquer resposta para o problema de nossa negligência com os valores humanos, que se baseie em uma religião, jamais será universal, portanto será inadequada.

O que precisamos hoje é uma abordagem para a ética que não dependa da religião e que possa ser igualmente aceitável por crentes e descrentes: uma ética secular.

Essa declaração pode parecer estranha vinda de alguém que desde muito cedo vive como um monge em mantos. No entanto, não vejo nenhuma contradição aqui. Minha fé me força a me esforçar pelo bem e benefício de todos os seres sencientes; e estender-me além de minha própria tradição, em direção às pessoas de outras religiões ou de nenhuma, está totalmente de acordo com isso.

Estou confiante que é tanto possível quanto valioso tentar uma nova abordagem secular para a ética universal. Minha confiança vem da convicção de que todos nós seres humanos basicamente temos uma inclinação ou disposição para o que percebemos como bom. O que quer que façamos, fazemos porque pensamos que haverá algum benefício. Ao mesmo tempo, todos apreciamos a bondade dos outros. Somos todos, por natureza, orientados em direção aos valores humanos básicos do amor e compaixão. Todos preferimos o amor dos outros do que seu ódio. Todos preferimos a generosidade dos outros do que sua mesquinharia. E quem entre nós não prefere tolerância, respeito e perdão por nossas falhas do que intolerância, desrespeito e ressentimento?

fbNessa visão, tenho a firme opinião de que temos ao nosso alcance um caminho e um modo para fundamentar valores internos que não contradizem nenhuma tradição religiosa e, ainda assim, de modo crucial, não dependem de religião.

Devo deixar claro que minha intenção não é ditar valores morais. Fazer isso não teria nenhum benefício. Tentar impor princípios morais à partir de fora, impô-los com ordens, jamais será eficaz. Em vez disso, convoco cada um de nós para chegarmos ao nosso próprio entendimento sobre a importância dos valores internos. Porque são esses valores que são a fonte tanto de um mundo eticamente harmonioso, quanto do nível individual da paz de espírito, confiança e felicidade que todos procuramos.

Obviamente que todos as religiões principais do mundo, com sua ênfase no amor, compaixão, paciência, tolerância e perdão, podem e, de fato, promovem valores humanos. Mas a realidade do mundo hoje é que basear a ética na religião não é mais adequado. É por isso que acredito que chegou a hora de encontrarmos uma maneira de pensar sobre espiritualidade e ética que esteja além da religião.

… a mudança efetiva da sociedade só virá através do esforço dos indivíduos: uma parte-chave de nossa estratégia para lidar com esses problemas deve ser a educação da próxima geração. … tenho esperança de que chegará o tempo em que possamos tomar como garantido o fato de que as crianças aprenderão, como parte do currículo escolar, sobre o caráter indispensável de valores como amor, compaixão, justiça e perdão.

junte-se… Para criarmos esse mundo melhor, portanto, que todos nós — idosos e jovens, não como membros deste ou daquele país, desta ou daquela fé, mas simplesmente como membros desta grande família humana de sete bilhões de pessoas — nos esforçemos juntos com visão, coragem e otimismo. Este é meu humilde apelo.

Dentro da escala temporal do cosmos, a vida humana não é mais que um minúsculo piscar. Cada um de nós é um visitante neste planeta, um convidado, que tem um tempo limitado para ficar. Que tolice maior haveria do que gastar esse curto tempo de modo solitário, infeliz e em conflito com nossos visitantes companheiros? Muito melhor, certamente, é usar nosso curto tempo buscando uma vida significativa, enriquecida pelo sentimento de conexão e serviço para os outros.

Até agora, do século 21 apenas uma década se foi; a maior parte ainda está por vir. É minha esperança que este seja um século de paz e de diálogo — um século em que uma humanidade mais cuidadosa, responsável e compassiva vai emergir. Esta também é minha prece.

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dalai-lama-meditating2Dalai Lama ensina meditação sem crenças

Imagem no topo: Jan Michael Ihl, Flickr/CC.

Não se engane: o retrato da humanidade que a mídia pinta não é fiel

Trancados em nossos casulos privados, a mídia passou a ser a principal maneira de imaginar como são as outras pessoas, e, como consequência, esperamos que todos os estranhos sejam assassinos, golpistas ou pedófilos — o que reforça o impulso de confiar apenas nos poucos indivíduos que já foram selecionados por redes familiares e de classe.

Naquelas raras ocasiões em que as circunstâncias (nevascas, tempestades) conseguem romper nossas bolhas herméticas e nos jogam junto a pessoas que não conhecemos, tendemos a nos maravilhar quando os concidadãos demonstram pouco interesse em nos cortar ao meio ou em molestar nossos filhos e que podem até mesmo ser surpreendentemente gentis e se mostrar dispostos a ajudar.

Alain de Botton, em “Religião para ateus”, cap. 2.

Dalai Lama: como meditar de modo independente de tradições espirituais

O texto abaixo é um trecho do capítulo sobre meditação do livro "Beyond Religion" ("Além da religião", 2011), em que o Dalai Lama descreve como meditar, de modo independente de qualquer tradição espiritual.

Formas de cultivo mental

Todas as principais tradições de fé enfatizam a importância de desenvolvermos nossa vida interior, e muitas das técnicas encontradas em minha própria tradição existem de alguma outra forma nas outras tradições. Em particular, há muitas similaridades entre as diversas práticas de treinamento da mente usadas em diferentes tradições contemplativas indianas. Mas há muito em comum com outras tradições espirituais também. Recentemente, por exemplo, assisti a uma palestra bastante agradável e informativa sobre prece contemplativa, realizada por um monge cristão da ordem carmelita, que apontou algumas semelhanças surpreendentes entre as técnicas cristã e budista.

Entretanto, mesmo com todas as ligações da meditação (ou cultivo mental) com a religião, não há nenhum motivo pelo qual ela não possa ser feita em um contexto completamente secular [independente de crenças]. Apesar de tudo, a disciplina mental em si não exige nenhum compromisso de fé. Ela só requer um reconhecimento de que desenvolver uma mente mais calma e clara é um esforço que vale a pena, e uma compreensão de que fazer isso irá beneficiar tanto a própria pessoa quanto os outros.

No que se refere à minha própria prática diária — com a exceção de certos exercícios especificamente religiosos e devocionais — pratico dois tipos de cultivo mental: meditação discursiva (ou analítica) e meditação de absorção. A primeira é um tipo de processo analítico através do qual o meditador se envolve em uma série de reflexões, enquanto a segunda envolve se concentrar em um objetivo ou objeto específico, posicionando a mente nisso — como se repousássemos profundamente em um tipo de completude. Acredito que combinar as duas técnicas é o mais benéfico.

Uma maneira útil de compreender as diferentes formas de cultivo ou familiarização mental é encarar cada prática na perspectiva de seu objetivo. Há, por exemplo, a prática de usar algo como um objeto: por exemplo, considerar a igualdade de todos os seres como o objeto de contemplação profunda. Depois, há a meditação do cultivo de qualidades mentais positivas. Nela, qualidades como compaixão e gentileza amorosa não são exatamente o objeto da prática, mas sim, a pessoa busca cultivar essas qualidades dentro de seu coração. A primeira dessas duas abordagens se refere ao desenvolvimento de estados mentais mais ligados ao pensamento, como por exemplo, compreensão. Já a segunda desenvolve mais estados mentais ligados à afeição, como compaixão. Podemos nos referir a esses dois processos como “educar a mente” e “educar o coração”.

junte-seComo vivemos em uma época em que muito pode ser feito apenas apertando um botão, alguns de nós podem esperar também ver mudanças imediatas na área do cultivo mental. Podemos supor que a transformação interna é simplesmente uma questão de obtermos a fórmula correta ou recitar o mantra certo. Isso é um erro. O cultivo mental exige tempo e esforço, envolvendo trabalho duro e dedicação prolongada.

Procrastinação

Para iniciantes, o primeiro requisito para o cultivo ou familiarização mental é um compromisso sério de praticar. Sem tal compromisso, é improvável que alguém chegue a apenas separar um tempo para começar. Às vezes, conto uma história sobre o problema da procrastinação.

Havia uma vez um lama que, para encorajar seus alunos a estudar, prometeu que iria levá-los para um piquenique um dia. Esse incentivo teve o efeito esperado, e os jovens monges ansiosamente se aplicaram nos estudos. No entanto, o prometido piquenique não acontecia. Após algum tempo, o estudante mais jovem, não querendo abrir mão da possibilidade de um dia de folga, relembrou o professor sobre sua promessa.

O lama respondeu que estava muito ocupado, então isso teria que esperar. Um longo tempo se passou, e o verão deu lugar ao inverno. De novo, o estudante lembrou o lama: “Quando iremos fazer nosso piquenique?”. “Agora não, estou realmente bastante ocupado”.

Um dia o lama notou uma comoção entre os estudantes. “O que está acontecendo?”, perguntou. Um cadáver estava sendo levado para fora do monastério. “Bem”, respondeu o estudante mais jovem, “aquele pobre homem ali está saindo para um piquenique!”.

O ponto dessa história é que, a menos que separemos tempo e um comprometimento adequado para as coisas que dizemos a nós e aos outros que faremos, sempre teremos outras obrigações e preocupações mais urgentes — enquanto a morte pode interferir a qualquer momento.

Planejar nossa prática

fbDe início, devo adverti-los: como o meditador iniciante irá rapidamente descobrir, a mente é como um cavalo selvagem: leva um longo tempo — e o cavalo precisa se acostumar com o treinador — antes de ele se acalmar e seguir ordens.

De modo similar, apenas com gentil persistência sobre um longo período, os benefícios reais da meditação se tornam aparentes. Claro que podemos separar apenas alguns dias para experimentar um curto programa de treinamento mental, mas é incorreto julgar os resultados antes de realmente termos dado uma chance a esse treino. Pode levar meses, até anos, para compreendermos todos os benefícios.

Horário

Em relação às coisas específicas da prática, o início da manhã em geral é a melhor hora do dia. A mente está em seu estado mais fresco e claro. Entretanto, é importante lembrar que para praticar bem de manhã cedo, é preciso uma boa noite de sono. No meu caso, posso dizer que estou entre os mais afortunados no que se refere ao sono. Apesar de acordar todo dia às 3h30 AM, em média procuro garantir oito ou nove horas de sono adequado.

Para muitas pessoas, isso pode ser difícil de arranjar. Se, por exemplo, houver crianças pequenas na casa, pode não ser possível meditar nas primeiras horas da manhã. Se este for o caso, provavelmente será melhor encontrar outra hora para praticar — preferivelmente, após um cochilo curto ou quando as crianças estiverem fora de casa. Também devo adverti-los de que a mente terá uma tendência ao torpor se você tiver comido muito. Idealmente, você não deve comer muito de noite, se espera praticar bem na manhã seguinte.

Quanto tempo

Em relação à quantidade de tempo que você deve separar para a prática, no início, mesmo dez ou quinze minutos por sessão já é bastante adequado. Na verdade, é muito melhor ter ambições modestas do que embarcar em um programa não sustentável, que mais provavelmente vai te fazer desistir em vez de consolidar um hábito.

Também é útil praticar por alguns minutos várias vezes pelo dia, além da sessão principal. Do mesmo modo que mantemos uma fogueira acesa colocando mais madeira de tempos em tempos, podemos manter a continuidade da meditação, complementando-a aqui e ali para que aquilo que já conseguimos não evapore completamente até a próxima sessão formal.

Local

Em relação a onde praticar, é dito nos manuais clássicos que barulho é como um espinho na mente. Para a maioria das pessoas, portanto, é bastante útil encontrar algum lugar para sentar onde não seremos incomodados por ruídos. Obviamente, também, é uma boa ideia desligar o celular antes de começar. Mas nada disso significa que a meditação não possa ser praticada mais ou menos em qualquer lugar, ou a qualquer hora do dia. Estou falando apenas sobre o modo ideal. Pessoalmente, considero bastante útil meditar enquanto viajo.

Postura

Em relação à postura física apropriada à meditação, qualquer posição confortável funciona, embora se você estiver confortável demais, há o perigo de deslizarmos em direção ao sono. Isso dito, pode ser útil adotar o que geralmente se chama de posição de lótus, em que você cruza as pernas e cada pé descansa sobre a coxa oposta. Uma vantagem dessa posição é que, além de manter-nos aquecidos, a coluna permanece ereta. No início, pode ser desconfortável, então não há problema em simplesmente sentar com as pernas cruzadas parte do tempo, ou usar uma cadeira, se isso também for difícil. De modo similar, para aqueles que — devido à sua tradição religiosa — preferem meditar ajoelhados, isso também serve. Você deve escolher qualquer posição que cause menos distração.

Se escolher a posição de lótus, você pode repousar as mãos em uma posição relaxada, com as costas da mão direita repousando sobre a palma da esquerda. Deixe os cotovelos à vontade, separados um pouco do corpo para que haja um intervalo para o ar passar. Frequentemente, pode ser útil sentar-se sobre uma almofada ligeiramente elevada na parte de trás. Isso ajuda a endireitar a espinha dorsal, que idealmente deve ficar reta como uma flecha, apenas com o pescoço ligeiramente curvado para frente. Manter a ponta da língua tocando a céu da boca ajuda a evitar a sede que pode surgir com certos exercícios de respiração. Os lábios e dentes podem ser deixados como de costume.

Em relação aos olhos, você pode descobrir por si mesmo o que funciona melhor. Alguns acham mais efetivo meditar com os olhos abertos. Para outros, isso distrai demais. Para a maioria, olhos semi-cerrados é o melhor, mas alguns preferem fechar os olhos totalmente.

Relaxar e repousar a mente

Assim que estiver relaxado, a primeira coisa a fazer é respirar fundo algumas vezes. Então, voltando a respirar novamente, tente focar em sua respiração, notando o ar entrando e saindo das narinas. O que você está tentando alcançar é uma mente em um estado neutro, nem positiva nem negativa.

Alternativamente, você pode inspirar e expirar enquanto conta silenciosamente de 1 a 5 (ou 7), e então repita o processo algumas vezes. A vantagem de fazer essa contagem silenciosa é que, ao dar à mente uma tarefa, a chance de ser carregado por outros pensamentos diminui. Em qualquer caso, gastar alguns minutos apenas observando sua respiração em geral é uma boa maneira de chegar a um estado mental mais calmo.

Podemos comparar esse processo de assentar a mente ao tingimento de um tecido. Um pedaço branco de tecido pode ser facilmente tingido de uma outra cor, mas é difícil tingir algo já colorido — a não ser para a cor preta. Do mesmo modo, quando mente está agitada, é difícil chegar a um resultado positivo.

Às vezes você terá dificuldade só para se concentrar, porque sua mente está nas mãos de alguma emoção forte, como a raiva. Em tais ocasiões, pode ser útil repetir quietamente algumas palavras várias vezes. Por exemplo, algo como “eu abro mão de minhas emoções aflitivas” ou, para quem acredita em alguma religião, um curta prece devocional ou mantra repetidos algumas vezes pode relaxar a aflição da emoção. Se essa técnica não funcionar, então talvez você precise se levantar e sair para uma curta caminhada antes de tentar de novo.

Pode haver ocasiões, especialmente no começo, em que pensamentos negativos continuam retornando após pouco tempo. Nesses casos, toda a sessão pode acabar tomada por exercícios para acalmar ou aquietar a mente. Tudo bem: isso ainda é treinamento mental. Ao ganhar alguma experiência sobre como a mente funciona e descobrir quais técnicas funcionam melhor para você, gradualmente você irá se familiarizar com um estado mental mais neutro. Só isso já é um bom progresso.

Quando conseguir estabelecer um estado mais assentado, talvez após alguns minutos, você pode realmente começar o trabalho do cultivo mental.

Nos estágios iniciais do treinamento, é melhor praticar diversos exercícios diferentes em sucessão. No início, você pode achar impossível manter a mente focada por mais de alguns minutos — talvez até mesmo somente alguns segundos — antes que a distração se instale. Isso é bem normal. Assim que perceber que se distraiu, apenas volte gentilmente ao que estava fazendo antes da distração surgir. Não deve haver nenhuma raiva ou auto-condenação quando isso acontecer, apenas um calmo reconhecimento do que a mente está fazendo e um calmo redirecionamento da atenção. O importante é não se sentir desencorajado.

Refletir sobre os benefícios do treinamento mental

Um exercício bastante útil no começo de uma sessão é considerar os benefícios da prática. Um benefício imediato é que a prática traz um breve alívio em relação à preocupação, antecipação e fantasias — frequentemente, obsessivas — com que nossas mentes habitualmente se ocupam. Isso em si é um grande benefício.

Outro benefício para refletir é que a prática é um caminho garantido para uma sabedoria superior, mesmo se esse caminho for longo, com muitos obstáculos a serem superados.

Também é bom investir algum tempo refletindo sobre o que pode acontecer se negligenciarmos a prática. Há o perigo que terminemos como o monge da história do piquenique: carregado para fora como um cadáver, antes de sequer conhecermos os benefícios desse esforço. Alguém que nunca se engaja nesse tipo de trabalho tem muito pouca chance de lidar de modo efetivo com os pensamentos e emoções destrutivas que, quando nos dominam, destroem qualquer esperança de paz de espírito.

Tendo considerado profundamente essas duas possibilidades opostas, e as vantagens de uma em relação à outra, então alternamos entre elas. Ao fazer isso, devemos perceber que os benefícios superam de longe quaisquer argumentos em prol de não praticar. Então, descansamos a mente nessa conclusão por um curto período, antes de passarmos para o próximo estágio da sessão.

Algumas práticas formais

Atenção focada

Uma prática de meditação mais formal é o cultivo da atenção sustentada por concentração unidirecional. Aqui, você escolhe um objeto como o foco de sua atenção. Pode ser uma flor, uma pintura, ou simplesmente uma lâmpada fraca; ou, para um praticante religioso, um objeto sagrado como um crucifixo ou uma imagem do Buda.

Embora, ao começar, seja útil ter o objeto na sua frente como um apoio, de modo último o objeto físico não é o foco da atenção. Em vez disso, uma vez que tenha escolhido seu objeto, tente cultivar uma imagem mental dele, e quando estiver bem familiarizado com ela, fixe sua atenção nessa visualização mental. Essa imagem mental do objeto é o que serve de âncora para sua meditação.

Tendo relaxado e assentado a mente, tente manter o foco no objeto. Visualize-o a cerca de um metro e meio de você na altura das sobrancelhas. Imagine que o objeto tenha cinco centímetros de altura e que irradie luz, tornando a imagem clara e brilhante. Também tente concebê-la como algo pesado. Esse peso tem o efeito de evitar a excitação, enquanto que o brilho do objeto evita o surgimento do torpor.

É melhor, ao fazer esse tipo de meditação, não fechar os olhos completamente, mantendo-os levemente abertos, para baixo. Às vezes, eles podem fechar por si mesmos — e tudo bem. O importante é que não devem nem estar totalmente fechados nem arregalados.

Também devo mencionar que para pessoas como eu, que usam óculos, tirá-los para meditar nem sempre é uma boa ideia. Embora sem óculos haja menos perigo de distrações visuais, podemos — devido à perda de clareza visual — mais facilmente cair no torpor. Isso pode fazer nossa prática se transformar num tipo de devaneio sem direção. Se isso acontecer, uma contramedida útil é pensar em algo agradável, algo que te traga alegria. Outra é pensar em algo que traga sobriedade, até mesmo algo que cause um pouco de tristeza. Ou você pode imaginar estar olhando para baixo a partir do topo de uma montanha, com visão desimpedida para qualquer direção.

Se começar a sofrer com o problema oposto — ficar distraído por algo que estiver vendo — é preciso remover a mente dos olhos. Sentar-se de frente para uma parede nua pode ser útil em tais casos.

Vigilância

Quando o objeto que estiver visualizando estiver estável em seu olho mental — talvez após muitas semanas ou meses de prática persistente — agora tente examinar a própria mente que mantém a visualização do objeto. Aqui você está tentando focar a mente ao mesmo tempo em que a examina, como se vigiasse de canto, para garantir que não está inconscientemente permitindo que ela relaxe demais. Quando a mente relaxa muito, o sono se aproxima! Mas quando conseguir gerar uma imagem mental forte e clara, você pode começar a se familiarizar com o tipo de foco que no dia-a-dia só experimenta ao tentar resolver um problema mental particularmente desafiador.

A ideia aqui é que quando você aprender a realmente focar a mente, então — do mesmo modo que a água é direcionada em uma hidrelétrica para reunir a grande força necessária para girar as turbinas — você pode usar toda a força de sua mente para se focar em qualidades como compaixão, paciência, tolerância e perdão.

Mesmo após chegar a certa habilidade de manter o foco, inevitavelmente você vai se descobrir perdendo a atenção aqui e ali quando sua mente se desvia do objeto, devido a eventos externos ou processos interiores de pensamento. Ao notar que sua mente se distraiu, conscientemente reconheça isso e gentilmente traga-a de volta ao objeto. Se necessário, frequentemente refresque a visualização do objeto para que a clareza da imagem retorne.

Duas qualidades são essenciais nesse tipo de meditação: clareza mental e estabilidade. A clareza mental ajuda a manter o foco. A estabilidade ajuda a garantir clareza, ao monitorar se a atenção continua brilhante. Para ajudar a garantir a presença contínua dessas duas qualidades, você precisa desenvolver e, então, aplicar duas faculdades importantes: atenção plena e vigilância. É através da aplicação constante dessas duas faculdades que você gradualmente aprende a treinar seu foco, tornando-se capaz de sustentar a atenção por um período prolongado.

Então, resumindo: em uma sessão formal típica, começamos assentando a mente através da respiração. Então escolhemos o objeto da meditação e focamos a atenção nele, o tempo todo monitorando se nossa atenção está se desviando. Ao notar a distração, gentilmente trazemos a atenção de volta ao objeto e continuamos. No final, quando quisermos encerrar a sessão, podemos fazer de novo algumas respirações profundas novamente para terminar em um estado mental de relaxamento.

Atenção no momento presente

Com a mente já relaxada por algum tipo de exercício de respiração, uma outra prática útil é tentar repousar sua mente, do jeito que ela é, no estado natural básico de consciência, ou aquilo que chamamos de “consciência do momento presente”.

Quando começar, é importante definir uma intenção enérgica de não permitir que sua mente seja levada por pensamentos sobre o que pode acontecer no futuro ou por lembranças de coisas do passado. Em vez disso, estabeleça a intenção de posicionar sua mente simplesmente no momento presente e de deixá-la ali o maior tempo possível.

Ao fazer essa prática, é uma boa ideia sentar, se possível, de frente para uma parede sem nenhuma cor ou padrão chamativos. Então, após algumas respirações profundas, simplesmente descanse a mente e comece a observá-la.

Isso de fato é algo bastante difícil de fazer no começo. Em nosso dia-a-dia, nosso mundo mental é dominado por estados definidos por objetos, tanto na forma de experiências sensoriais quanto de pensamentos, memórias e ideias. Muito raramente vivenciamos um estado que não esteja amarrado a um conteúdo específico, simplesmente descansando no estado natural de consciência da mente.

Então, quando você começa essa meditação, inevitavelmente você vai notar que sua mente começa a vagar, pensamentos e imagens passam por sua atenção consciente, ou uma memória surge sem nenhum motivo aparente. Quando isso acontecer, não seja capturado pela energia desses pensamentos e imagens, tentando suprimir ou reforçá-los. Simplesmente note e solte, como se fossem nuvens aparecendo no céu e desaparecendo de vista, ou bolhas surgindo e se dissolvendo de volta na água.

Com o tempo, você vai começar a ter lampejos do estado básico de atenção plena de sua mente, ou o que pode ser chamado de “luminosidade básica”. Ao continuar praticando assim, aqui e ali você irá começar a vivenciar curtos intervalos de algo que parece uma ausência ou vácuo, quando sua mente não tem nenhum conteúdo em particular. Seus primeiros êxitos sobre isso serão bem transitórios. Mas com persistência por um longo período, o que começa como um lampejo pode ser gradualmente estendido, e você pode começar a compreender que a mente é como um espelho, ou água límpida, em que imagens aparecem e desaparecem sem afetar o meio no qual elas surgem.

Um importante benefício dessa prática é a habilidade que você ganha de ser capaz de observar os pensamentos sem ser atraído por eles. Como um observador desapegado assistindo um espetáculo, você aprenderá como ver seus pensamentos pelo que eles são: construções de sua mente. Muitos de nossos problemas surgem porque, em nosso estado ingênuo destreinado, confundimos nossos pensamentos com a realidade de fato. Pegamos o conteúdo de nossos pensamentos como se fosse algo real e, baseados nisso, construímos toda nossa percepção e reações em relação à realidade. Ao fazer isso, nos amarramos ainda mais em um mundo que, essencialmente, é nossa criação; e ficamos presos nele, como um pedaço de corda embaraçado em seus próprios nós.

Treinamento em compaixão e gentileza amorosa

Outro tipo de prática bastante benéfica envolve o cultivo de qualidades mentais positivas, como compaixão e gentileza amorosa. Esse tipo de exercício faz uso de processos deliberados de pensamento. De novo, começamos com um exercício preliminar de respiração para relaxar a assentar a mente. Só depois dessa preparação começamos a prática de fato.

Esse treino é particularmente útil para ocasiões em que estiver lutando com sua atitude ou sentimentos em relação a uma pessoa com quem tenha dificuldades. Primeiro, traga essa pessoa à mente, criando uma imagem tão vívida que você quase sente a presença dela. Depois, comece a contemplar o fato de que ela também tem esperanças e sonhos, sente alegria quando as coisas vão bem e tristeza quando não vão. Em relação a isso, não há a menor diferença entre a outra pessoa e você. Exatamente como você, essa pessoa deseja felicidade e não quer sofrimento.

Ao reconhecer essa mesma aspiração fundamental em comum, tente se sentir conectado à pessoa e cultive o desejo de que ele ou ela tenha felicidade. Pode ajudar se você, em voz baixa, repetir o desejo, dizendo algo como: “Que você esteja livre do sofrimento e suas causas. Que você tenha felicidade e paz”. Então descanse a mente nesse estado de compaixão.

Em relação aos dois tipos de treino mental mencionados antes — discursivo e de absorção — este modo de cultivar a compaixão fundamentalmente envolve um processo discursivo, mas aqui e ali também é bom repousar a mente em um estado de absorção, de modo parecido com a chegada a uma conclusão em comum em uma discussão.

… essa combinação de métodos — treinamento mental discursivo com absorção — é igualmente útil para o cultivo de outras qualidades internas, como paciência e resistência.

“Vamos trabalhar pela paz em vez de esperar pela ajuda de Deus, de Buda ou de governos”

Trechos de entrevista do líder tibetano após os ataques em Paris:

“O século 20 foi violento, mais de 200 milhões de pessoas morreram devido a guerras e outros conflitos. Vemos agora o sangue derramado no século passado transbordar para este. Se dermos mais ênfase à não violência e à harmonia, poderemos proclamar um recomeço. A menos que façamos sérios esforços para alcançar a paz, continuaremos a ver uma reprodução do caos que a humanidade vivenciou no século 20.

As pessoas querem levar uma vida pacífica. Mas os terroristas têm vista curta, e esta é uma das causas dos desenfreados atentados suicidas. Não podemos resolver esse problema apenas através de orações. Eu sou budista e acredito na oração. Mas foram os seres humanos que criaram esse problema, e agora estamos pedindo a Deus para resolvê-lo. É ilógico. Deus diria: resolvam-no sozinhos porque vocês mesmos o criaram.

junte-sePrecisamos de uma abordagem sistemática para fomentar valores humanistas, que promovam unidade e harmonia. Se começarmos agora, há esperança de que este século possa ser diferente do anterior. É do interesse de todos. Por isso, vamos trabalhar pela paz em nossas famílias e na sociedade, em vez de esperar pela ajuda de Deus, de Buda ou de governos.”

Sua mensagem principal sempre foi de paz, compaixão e tolerância religiosa, mas o mundo parece estar indo na direção oposta. A sua mensagem não ressoou nas pessoas?

fb“Eu discordo. Acho que apenas uma pequena porcentagem das pessoas adotaram o discurso da violência. Nós somos seres humanos, e não há base ou justificativa para matar outras pessoas. Se você considera os demais como irmãos e irmãs, e respeita seus direitos, não resta espaço para a violência.

Além disso, os problemas que estamos enfrentando hoje são resultado de diferenças superficiais entre crenças religiosas e nacionalidades. Somos um só povo.”

Vemos líderes políticos obcecados com o crescimento econômico, mas que não se importam com a moralidade. Você se preocupa com essa tendência?

“Nossos problemas vão aumentar se não posicionarmos princípios morais à frente do dinheiro. A moralidade é importante para todos, inclusive para religiosos e políticos.”

Leia a entrevista inteira aqui.

Da felicidade pessoal em direção à compaixão

O texto a seguir é um trecho do livro "A Force For Good", escrito por Daniel Goleman, sob a orientação do Dalai Lama.

— “Qual é a fonte da felicidade?”, um estudante da Universidade de Princeton perguntou ao Dalai Lama.

Olhando os estudantes em volta aguardando a resposta, o Dalai Lama parou alguns momentos e, então, provocou: “Dinheiro!”.

Esperou mais um pouco e: “Sexo!”.

Depois: “Boate!”.

Sua piada demoliu o auditório.

Então ele continuou, dizendo que quando vemos o mundo através de uma lente materialista, consideramos tais estímulos sensoriais como sendo fontes de satisfação ou alegria. Mas, acrescentou, focar-se apenas no prazer dos sentidos nos deixa eternamente insatisfeitos, porque tais prazeres duram pouco.

Quando encontrei o Dalai Lama na Itália para este livro, ele tinha acabado de ser convidado para uma conferência sobre a natureza da felicidade pelo lorde Richard Layard, a quem minha esposa e eu visitamos na semana seguinte em seu escritório na London School of Economics.

O objetivo da vida, Layard nos disse, deve ser criar o máximo possível de felicidade e o mínimo possível de sofrimento no mundo à nossa volta.

Layard e seus aliados buscaram lançar um movimento social baseado nessa ideia, para oferecer uma alternativa à predominante obsessão por enriquecimento financeiro. Eles querem disseminar uma visão melhor sobre o que é uma vida feliz e satisfatória.

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Richard Layard, co-fundador da Ação para Felicidade, com o líder tibetano.

Assim começou a Ação para Felicidade (Action for Happiness, no exterior), um movimento secular que engloba muitas das maneiras que a religião usa para dar às pessoas uma âncora ética e emocional — ensinando como se engajar na vida, com um propósito, tratando bem os outros — mas de modo a atrair também pessoas que não se interessam por religião. Como um sinal de sua aprovação, o Dalai Lama aceitou ser o “patrono” do movimento.

junte-seAo se juntar à Ação para Felicidade, as pessoas assumem o compromisso: “Tentarei criar mais felicidade e menos infelicidade no mundo ao redor”. Isso significa realizar ações que aumentam o próprio bem-estar, mas também criam mais felicidade nas vizinhanças, ambientes de trabalho, escolas e comunidades, diz Mark Williamson, diretor do movimento.

O número de membros da Ação para Felicidade chega às dezenas de milhares pelo mundo, e 60% estão em países bem longe da Inglaterra, mas “a magia está nos pequenos grupos cara-a-cara“, conta Williamson. O modelo parece um pouco com o dos alcóolicos anônimos, em que qualquer pessoa está qualificada para iniciar um grupo local, onde as pessoas se encontram regularmente em torno de um formato fixo.

Cada encontro começa com alguns minutos de atenção plena e expressões de gratidão, com o tópico da discussão sendo o coração da sessão. Os encontros terminam com as pessoas escolhendo alguma ação para realizar, por exemplo: ajudar alguém em dificuldade ou se conectar a uma pessoa solitária. Um grupo iniciou um Café da Felicidade, onde pessoas com objetivos similares se reunem para compartilhar ideias sobre como criar uma vizinhança mais feliz e que dê mais apoio.

Participantes do curso, em Londres.
Participantes do curso, em Londres.

Durante o curso “Explorar o que realmente importa”, o principal programa do movimento, grupos se encontram por oito semanas, com cada sessão focada em uma grande questão para discussão. Eles começam com a pergunta “o que realmente importa na vida?”, e depois “o que realmente nos faz feliz?” — seguidas por sessões sobre como lidar com adversidades, ter bons relacionamentos, se preocupar e cuidar dos outros, criar ambientes de trabalho e vizinhanças mais felizes. Eles terminam com: “Como criar um mundo mais feliz?”.

Essa progressão a partir do senso de sentido e felicidade pessoais, até a compaixão altruísta, geralmente leva as pessoas a encontrar maneiras de ajudar os outros. Por exemplo, Jasmine Hodge-Lake chegou à Ação para Felicidade devido à sua dor crônica. Problemas de saúde crônicos e profundos criaram uma mistura tóxica de sofrimento que levou sua vida para um beco sem saída.

Incapaz de trabalhar, e tendo estado em dor constante por mais de uma década, ela passava seus dias em desespero. Um curso para lidar com a dor, que não trouxe nenhum alívio, a fez sentir-se ainda mais impotente, lançando-a fundo na depressão. “No final, senti: não tenho mais esperança”, diz Jasmine. “Essa é a minha vida: uma não-vida”.

Para piorar, ela se sentia isolada. “Eu não queria ficar no meio de pessoas. Pensava que ninguém realmente se importava comigo”, lembra ela.

Por acaso, ela se deparou com o website do movimento, que inclui uma lista simples das “10 chaves para uma vida mais feliz” — uma delas, por exemplo, é se conectar mais a pessoas. Para Jasmine, essa lista trouxe a compreensão de que havia coisas práticas que ela podia fazer para se tornar mais feliz. Então, entrou no curso de oito semanas.

A primeira “lâmpada que acendeu” foi durante a reprodução de uma palestra de Jon Kabat-Zinn sobre atenção plena. Ela viu que poderia mudar sua relação com a dor: aceitá-la em vez de lutar contra. Essa mudança interna diminuiu sua aflição emocional, mesmo que a sensação física de dor tenha continuado.

Outra lâmpada brilhou durante a semana sobre o tema “O que faz um trabalho ser significativo e satisfatório?”. Jasmine, dando-se conta que havia perdido a paixão por praticamente tudo, decidiu trabalhar com outras pessoas sofrendo com dor crônica, para ver como ela poderia ajudá-los.

“Eu ainda estava bem deprimida, mas comecei a fazer mais coisas”, conta Jasmine. “Foi incrível como as ferramentas que a Ação para Felicidade me deu ajudaram. Descobri que havia coisas úteis que eu podia fazer. Comecei a ter esperança sobre o futuro”.

Com essa mudança interna, ela passou a pensar em como melhorar o apoio a pessoas que vivem com dor crônica. “Compreendi que precisamos de uma nova abordagem: uma que contenha mais esperança e que use algumas das ideias que aprendi na Ação para Felicidade”.

Jasmine hoje informalmente aconselha outras pessoas sofrendo com dor crônica sobre como elas podem ser ajudadas — e ela procura dar esperança a eles. Ela está no processo de se tornar uma “voz paciente” em um novo programa para aprimorar as diretrizes dos cuidados com pacientes no sistema médico britânico. E também está espalhando a ideia da Ação para Felicidade, passando o cartão das “10 chaves para uma vida mais feliz”, e encorajando as pessoas a se envolverem.

“Não estaria aqui agora sem a Ação para Felicidade e aquele curso”, afirma. “Ainda tenho dias ruins e a vida certamente não é perfeita. Mas isso me ajudou tanto! Agora estou tentando ser a mudança que gostaria de ver”.

Imagem no topo: Fountain Posters, Wikimedia Commons/CC.

Ativismo compassivo

O que o movimento Ação para Felicidade teria de interessante para pessoas que já seguem algum caminho espiritual?

Diversos textos neste site explicam o que queremos, mas de um ponto de vista secular. Por exemplo:

Ao nos apresentarmos, falamos em grande parte para pessoas sem nenhuma religião ou fé específicas.

No entanto, nosso secularismo não é uma oposição à religião, mas sim algo que também abraça pessoas com qualquer afiliação religiosa. Esta noção particular de secularismo costuma ser usada, por exemplo, pelo Dalai Lama ao se referir ao governo da Índia: é um governo secular no sentido de que respeita igualmente todo tipo de fé, incluindo a não-fé.

O Dalai Lama é o patrono de nosso movimento não exatamente por ser um mestre espiritual realizado, mas sim por estar entre os maiores promotores da ética secular e valores humanos de modo universal.

Então o que teríamos a oferecer para quem já segue um caminho espiritual?

Em termos de satisfação e bem-estar pessoais, provavelmente não temos nada a acrescentar. Mas nosso movimento não é sobre alcançar mais felicidade pessoal, e sim sobre importar-se com a felicidade dos outros (e isso, inevitavelmente, afeta positivamente a própria felicidade).

Então, para pessoas que seguem um caminho espiritual, a Ação para Felicidade também pode ser uma rica plataforma de ação compassiva no mundo: somos também um movimento humanitário. E, para pessoas que estão preocupadas com o bem-estar alheio ou o alívio de seu sofrimento, atuar ativamente nesse sentido, incluindo a possibilidade de diversas ações em conjunto, pode ser uma ótima maneira de realizar essas aspirações.

Fé e ciência

Obviamente que nosso movimento não pretende ser um substituto para o caminho espiritual de ninguém. A ideia é nos unirmos por um bem comum.

junte-sePor exemplo, outro possível ponto de interesse para praticantes espirituais é que o conhecimento baseado em pesquisas científicas que divulgamos pode atuar como um contraponto útil — ou até reforço — para a fé, já que muitas dessas pesquisas confirmam os insights que pessoas de fé vêm realizando há séculos — por exemplo, sobre os benefícios do altruísmo ou meditação.

Ética secular

Uma das características de muitos praticantes espirituais mais experientes é que eles passam a falar menos em termos de suas próprias doutrinas, e mais de um modo que seja compreensível e acessível para um número maior de pessoas.

E o Dalai Lama não é o único. Muitos desses líderes vêm chamando a atenção para a necessidade de se promover valores humanos — como solidariedade e compaixão — entre pessoas sem fé. A ideia é desfazer o mal-entendido de que esses valores estão ligados à religião.

Por exemplo, hoje em dia, se alguém chegar em uma roda de amigos descrentes e dizer que está tentando ser mais amoroso com o próximo, instantaneamente as outras pessoas vão imaginar que ela se converteu para alguma religião, encontrou um “guru” etc. Quando na verdade, amor ao próximo é um valor ético básico, independente de crenças.

O fato de que valores humanos como compaixão estão sendo rejeitados e descartados, por serem confundidos com religião, é um problema moderno com que diversas pessoas — incluindo muitos praticantes espirituais — se preocupam, já que isso contribui para uma sociedade menos humana. Não é uma questão de converter ninguém para um sistema religioso moral, mas sim de promover a ética secular, um conjunto de valores humanos totalmente independente de doutrinas espirituais.

Esse é um dos objetivos centrais da Ação para Felicidade, sendo portanto também uma área de atuação em que seguidores espirituais podem ter entusiasmado interesse.

(este texto se refere mais a uma visão pessoal do autor)

Imagem: Minette, Flickr/CC.

Atenção plena precisa de altruísmo

matthieu-ricard-1De um texto do Matthieu Ricard, no Brasil Post (obs: por “mindfulness”, leia-se “atenção plena”):

… Quando instrutores qualificados como Jon Kabat-Zinn, ele mesmo uma pessoa muito compassiva, ensina a prática mindfulness, as principais mensagens que vêm à mente são de benevolência, altruísmo e compaixão.

No entanto, nem sempre é assim. Um professor pode deixar de fora esse importante componente na sua apresentação ou método. Quando a bondade e a compaixão não estão claramente presentes no treinamento, há sempre o risco de usar a mindfulness meramente como ferramenta para aumentar a concentração e o foco, com o objetivo de atingir metas eticamente questionáveis. …

… Para proteger essa prática de qualquer desvio, um componente claro de altruísmo precisa ser incorporado desde o início. Precisamos chamá-la, sistematicamente, de “mindfulness compassiva”.

Ao fazermos isso, oferecemos uma maneira muito poderosa e secular de cultivar a benevolência e promover uma sociedade mais altruísta, ao mesmo tempo cultivando a atenção plena a qualquer momento. Para ser totalmente transformadora, a revolução mindfulness deve andar de mãos dadas com a revolução altruísta.

Leia também:

Ser altruísta é a saída para construir harmonia em sociedade.