Segue abaixo um trecho do livro “The Little Book of Atheist Spirituality”, em que o filósofo contemporâneo francês André Comte-Sponville fala sobre o perigo de abandonarmos a fidelidade aos valores e sobre a importância de cultivarmos uma ética secular (uma das mensagens principais do movimento Ação para Felicidade). Vale notar que o autor não está criticando a religião nem louvando o ateísmo, pelo contrário: diz que mesmo pessoas sem religião podem se beneficiar da ética em que as religiões também se baseiam.
… O que sobra do Ocidente Cristão quando ele deixa de ser cristão?
Há apenas duas possíveis respostas para essa pergunta: nada ou alguma coisa.
Se acreditarmos que nada sobra, então podemos muito bem jogar logo a toalha. Não teríamos mais nada com que fazer oposição tanto ao fanatismo vindo de fora, quanto ao nilismo vindo de dentro — e, contrariamente ao que muitas pessoas pensam, o nilismo é o principal perigo.
Iríamos pertencer a uma civilização morta, ou pelo menos uma que está morrendo. Poderíamos continuar vendendo carros, computadores, filmes e videogames, mas essas atividades seriam sem sentido e não durariam muito — porque a humanidade não mais seria capaz de se reconhecer nelas, ou considerá-las um motivo suficiente para seguir vivendo e lutando; dessa forma, seríamos incapazes de resistir ao desastre (ideológico, ecológico ou econômico).
A riqueza nunca foi suficiente para criar uma civilização, muito menos a pobreza. Civilizações requerem cultura, imaginação, entusiasmo e criatividade, e nada disso vêm sem coragem, trabalho e esforço. “O principal perigo que ameaça a Europa”, como Edmund Husserl colocou, “é a fadiga”. Boa noite, crianças; o mundo Ocidental agora decidiu substituir a fé pela sonolência.
Entretanto, podemos também acreditar que algo sobra sim quando o Ocidente Cristão deixa de ser cristão. E já que o que sobra não é mais uma fé em comum (porque isso já deixou de ser comum — 50% da população francesa hoje é ateia, agnóstica ou não-religiosa; cerca de 8% é muçulmana, e por aí vai), então só pode ser uma fidelidade em comum, ou seja, uma ligação compartilhada com os valores que herdamos, e que — para cada um de nós — pressupõe ou exige o desejo de passá-los adiante.
Acreditar ou não em Deus é uma questão crucial para os indivíduos. Mas para os povos, isso não é o principal. O destino de nossa civilização não pode depender de uma questão que é objetivamente impossível de solucionar! Há questões mais importantes, mais urgentes com que precisamos lidar. Na verdade, mesmo para indivíduos, a questão da fé não deve eclipsar a questão mais crucial da fidelidade.
Eu realmente desejo submeter minha consciência a uma crença (ou descrença) que não pode ser verificada? Eu realmente desejo obter moralidade à partir de minha metafísica e medir minhas tarefas de acordo com minha fé? Isso significaria abrir mão de uma certeza por uma incerteza, uma humanidade que de fato existe por um Deus possivelmente existente. É por isso que às vezes gosto de me descrever como um ateu devoto. Sou ateu, já que não acredito nem em Deus nem em qualquer poder sobrenatural, e ainda assim sou um devoto, já que reconheço meu lugar dentro de uma história, tradição e comunidade específicas: os valores greco-judaico-cristãos do mundo ocidental.
Minha adolescência me preparou para isso. Eu era cristão, como já mencionei, mas não passava todo tempo estudando o catecismo. Nessa fase de minha existência, a pessoa que mais me ensinou sobre ética — mais do que qualquer padre e, por muito tempo, mais do que qualquer filósofo — foi o cantor Georges Brassens. Todo mundo sabia que ele não acreditava em Deus, embora sua ética, ao mesmo tempo em que não concordava com o Vaticano carregava a marca dos Evangelhos e continuava essencialmente fiel a eles, trazendo o que o filósofo Jean-Marie Guyau descreveu como uma ética “sem obrigações nem punição”. Talvez as canções de Joan Baez, Woody Guthrie e dos Beatles tenham tido papel similar no mundo de língua inglesa.
Outro importante mentor em minha vida foi Montaigne, embora tenha demorado um bom tempo para descobri-lo. Se ele acreditava ou não em Deus é um ponto de debate entre especialistas. Ele mencionava mais Sócrates do que Abraão, mais Lucrécio do que Jesus. Acima de tudo, ele ensinou a liberdade. Isso não o impediu de, ao discutir questões morais, citar o Genesis (“a primeira lei que Deus deu ao ser humano”) ou mencionar os Dez Mandamentos, “que Moisés preparou para o povo da Judeia sair do Egito”. Sua mãe, aparentemente, era judia. Talvez isso tenha o ajudado a ver que não há contradição entre fidelidade e liberdade espiritual.
O mesmo era verdade sobre Spinoza. Ele não era mais cristão do que eu sou; na verdade, ele pode muito bem ter sido tão ateu quanto eu (pelo menos, ele não acreditava em nenhum Deus transcendente) — e ainda assim ele considerava Jesus um grande mestre. Era ele Deus? Definitivamente não. Era ele o Filho de Deus? Não, isso também não. Para Spinoza, Jesus era meramente um ser humano, mas um ser humano excepcional — “o maior de todos os filósofos”, ele uma vez o chamou — aquele que melhor expressou a essência da moralidade. E o que seria isso? É o que Spinoza chama de “o espírito de Cristo”, querendo dizer que, para espíritos livres, a única lei é “justiça e caridade”, a única sabedoria é o amor, e a única virtude é “fazer o bem e viver com alegria”. Por que meu ateísmo deveria impedir-me de enxergar a grandeza dessa mensagem?
Imagem no topo: casualeye, CC0.